A bolacha errada do pacote
Há quem se ache a última bolacha do pacote.
O Salvador sofre da Síndrome «Tirei a bolacha errada do pacote».
Bem sei que a nossa vida nos últimos meses foi confusa e ele sofreu com isso.
Mas já estamos na casa nova desde Dezembro e, honesta e ingenuamente, acreditei que isto, como tudo o resto, acabaria por passar.
Não podia estar mais enganada.
Tudo para ele é exactamente ao contrário do que ele quer: as rotinas, os horários, a roupa que tem de vestir, a comida, os brinquedos, os livros....
Até os dias da semana estão mal: escola era ao sábado e domingo e os outros dias passavam a ser os dias inúteis.
Hoje não estou a conseguir aguentar: a Síndrome está num ataque agudo e pouco deve faltar para lhe dar com o «pacote no toutiço» a ver se acertamos na bolacha de uma vez por todas.
- Quando é que comeste o lanche que te mandei? - pergunto.
- Que lanches é que tu pagas?
- Todos. Já te expliquei e isso agora não vem ao caso. Quando é que comeste o lanche que te mandei? - insisto.
- Com a Jack.
- Muito bem. Como estavas com a Paulinha, na 2ª feira, tal como te tinha dito, pergunto à Jack.
- Não comi com a Jack.... Comi no lanche.
- Qual deles?
- No da tarde.
Estamos a chegar ao carro e ele grita no meio da estrada:
- Estou cheio de fome!!!!
- Temos pena. Quando me pediste que te deixasse levar o lanche de fim de tarde para a escola, ao invés de o comeres no carro a caminho de casa, avisei que o lanche era para comer depois do lanche da tarde, quando te desse a fome. Já conversámos sobre isso vezes e vezes sem conta. O objectivo é comeres alguma coisa antes de chegares a casa para depois, quando chegares, tomares banho e irmos à nossa vidinha, certo?
- Não volto a comer daqui até ao Inverno!!!! - grita-me.
- Primeiro, atenção ao tom de voz. Não te admito que fales assim seja com quem for, muito menos comigo. E segundo, sabes que a Primavera começou esta semana, certo? Ainda faltam muitos meses até ao Inverno...
- E então? Prefiro morrer à fome do que ouvir sermões....
Não respondi. Não que não quisesse, mas senti-me impotente.
Destroçada. Frustrada. Irritada. Com uma vontade enorme de chorar...
Chegados a casa, assim que lhe abri a porta do carro, começou a chorar porque estava a chover.
Assim que entrou voltou a dizer que estava cheio de fome.
Começou a descalçar-se e dou com ele a chorar atrás do sofá:
- O que foi agora, Salvador?
- E O QUE É QUE ISSO TE INTERESSA??????
- COMO!!?!?!?!?!?!? DEVO TER PERCEBIDO MAL!!!!!!!! O QUE É QUE DISSESTE!?!??
Ficou a olhar para mim. Esgazeado.
E eu, ali, destroçada. Arruinada por dentro.
Porquê???
Depois de jantar, mais calmo, vem do quarto a grunhir e arfar.
- O que foi, Filho???
- Porque eu ia fazer desenhos e a capa do bloco rasgou-se.
- Não faz mal. Desde que as folhas não se soltem, não tem problema. E mesmo que elas se soltem, arranjamos forma de as prender para não se estragarem. Não te preocupes.
- Oh pá, mas isto assim... Isto assim....
- Não tem problema. Dá para desenhares?
- Sim.....
- Então esquece que a capa se rasgou. Protegemos as folhas de outra forma.
Vim para o pc.
Pus os phones a ver se conseguia arejar a cabeça por dentro porque ainda apanho uma pneumonia se tentar ir arejá-la lá fora.
Começo a ouvir uns bramidos, uns grunhidos, misturados com uns guinchos e uns soluços. Quando tiro os phones, um rasganço de folha.
- Que se passa, Salvador?
- Este desenho está horrível, eu não sei fazer desenhos como eles na televisão estão a ensinar, é feio e é horrível...
Vou junto a ele.
- Vem cá à Mãe... - peço doçamente.
- Para quê? Isso vai fazer com que eu saiba desenhar um T- Rex???
É sexta-feira.
Final de uma semana com 3 testes para ele e com consultas e exames médicos para mim, além do dia-a-dia normal que, já de si, é esgotante.
Estamos cansados, eu sei.
Mas sinto-me impotente.
Frustrada.
Zangada comigo mesma.
Ele odeia regras, rotinas.
Não se lhe pode pedir nada que saia do que lhe apetece, seja o que for: fazer, comer, vestir, ouvir....
Tal não significa que lá por lhe ter saído a bolacha errada no pacote lhe seja permitido fazer o que quer, quando quer e como bem entende.
Mas é esgotante.
Frustrante.
Explicar, todos os dias, que há formas de estar e de agir que são as corretas, que existem regras de comportamento que é expectável que cumpra: na escola, com os outros, em casa, em família....
Não estou a criar um monstro, eu sei.
Ele é meiguinho, inteligente, um coração mole. Quando quer. Se quiser...
Também sei que não sou um caso isolado, mas ele é o meu «filho isolado».
A única bolacha no meu pacote parental.
E tenho dias em que não sei que forma mais inventar para lidar com ele. E quem me conhece sabe que eu tenho uma imaginação desenfreada....
Enfim, amanhã será um novo pacote.
De onde, esperemos, saia, pelo menos de quando em vez, uma bolacha certa.