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O meu filho dava um livro...

... e vários filmes!!! Num elenco de luxo, temos como protagonista Salvador, nascido a 28.04.2010, em cenários da vida quotidiana. Registado no nosso dia-a-dia, por isso aconselha-se alguma prudência quando imaginar as cenas descritas: são bem reais..

O meu filho dava um livro...

... e vários filmes!!! Num elenco de luxo, temos como protagonista Salvador, nascido a 28.04.2010, em cenários da vida quotidiana. Registado no nosso dia-a-dia, por isso aconselha-se alguma prudência quando imaginar as cenas descritas: são bem reais..

A bolacha errada do pacote

Há quem se ache a última bolacha do pacote. 

O Salvador sofre da Síndrome «Tirei a bolacha errada do pacote».

 

Bem sei que a nossa vida nos últimos meses foi confusa e ele sofreu com isso.

Mas já estamos na casa nova desde Dezembro e, honesta e ingenuamente, acreditei que isto, como tudo o resto, acabaria por passar.

 

Não podia estar mais enganada.

 

Tudo para ele é exactamente ao contrário do que ele quer: as rotinas, os horários, a roupa que tem de vestir, a comida, os brinquedos, os livros....

Até os dias da semana estão mal: escola era ao sábado e domingo e os outros dias passavam a ser os dias inúteis.

 

Hoje não estou a conseguir aguentar: a Síndrome está num ataque agudo e pouco deve faltar para lhe dar com o «pacote no toutiço» a ver se acertamos na bolacha de uma vez por todas.

 

- Quando é que comeste o lanche que te mandei? - pergunto.

- Que lanches é que tu pagas?

- Todos. Já te expliquei e isso agora não vem ao caso. Quando é que comeste o lanche que te mandei? - insisto.

- Com a Jack.

- Muito bem. Como estavas com a Paulinha, na 2ª feira, tal como te tinha dito, pergunto à Jack.

- Não comi com a Jack.... Comi no lanche.

- Qual deles?

- No da tarde.

 

Estamos a chegar ao carro e ele grita no meio da estrada:

- Estou cheio de fome!!!!

- Temos pena. Quando me pediste que te deixasse levar o lanche de fim de tarde para a escola, ao invés de o comeres no carro a caminho de casa, avisei que o lanche era para comer depois do lanche da tarde, quando te desse a fome. Já conversámos sobre isso vezes e vezes sem conta. O objectivo é comeres alguma coisa antes de chegares a casa para depois, quando chegares, tomares banho e irmos à nossa vidinha, certo?

- Não volto a comer daqui até ao Inverno!!!! - grita-me.

- Primeiro, atenção ao tom de voz. Não te admito que fales assim seja com quem for, muito menos comigo. E segundo, sabes que a Primavera começou esta semana, certo? Ainda faltam muitos meses até ao Inverno...

- E então? Prefiro morrer à fome do que ouvir sermões....

 

Não respondi. Não que não quisesse, mas senti-me impotente.

Destroçada. Frustrada. Irritada. Com uma vontade enorme de chorar...

 

Chegados a casa, assim que lhe abri a porta do carro, começou a chorar porque estava a chover. 

Assim que entrou voltou a dizer que estava cheio de fome.

Começou a descalçar-se e dou com ele a chorar atrás do sofá:

- O que foi agora, Salvador?

- E O QUE É QUE ISSO TE INTERESSA??????

- COMO!!?!?!?!?!?!? DEVO TER PERCEBIDO MAL!!!!!!!! O QUE É QUE DISSESTE!?!??

Ficou a olhar para mim. Esgazeado.

 

E eu, ali, destroçada. Arruinada por dentro.

Porquê??? 

 

Depois de jantar, mais calmo, vem do quarto a grunhir e arfar.

- O que foi, Filho???

- Porque eu ia fazer desenhos e a capa do bloco rasgou-se.

- Não faz mal. Desde que as folhas não se soltem, não tem problema. E mesmo que elas se soltem, arranjamos forma de as prender para não se estragarem. Não te preocupes.

- Oh pá, mas isto assim... Isto assim....

- Não tem problema. Dá para desenhares?

- Sim.....

- Então esquece que a capa se rasgou. Protegemos as folhas de outra forma.

 

Vim para o pc.

Pus os phones a ver se conseguia arejar a cabeça por dentro porque ainda apanho uma pneumonia se tentar ir arejá-la lá fora.

Começo a ouvir uns bramidos, uns grunhidos, misturados com uns guinchos e uns soluços. Quando tiro os phones, um rasganço de folha.

- Que se passa, Salvador?

- Este desenho está horrível, eu não sei fazer desenhos como eles na televisão estão a ensinar, é feio e é horrível...

Vou junto a ele.

- Vem cá à Mãe... - peço doçamente.

- Para quê? Isso vai fazer com que eu saiba desenhar um T- Rex???

 

É sexta-feira.

Final de uma semana com 3 testes para ele e com consultas e exames médicos para mim, além do dia-a-dia normal que, já de si, é esgotante.

Estamos cansados, eu sei.

Mas sinto-me impotente.

Frustrada.

Zangada comigo mesma.

 

Ele odeia regras, rotinas.

Não se lhe pode pedir nada que saia do que lhe apetece, seja o que for: fazer, comer, vestir, ouvir....

Tal não significa que lá por lhe ter saído a bolacha errada no pacote lhe seja permitido fazer o que quer, quando quer e como bem entende. 

Mas é esgotante.

Frustrante.

Explicar, todos os dias, que há formas de estar e de agir que são as corretas, que existem regras de comportamento que é expectável que cumpra: na escola, com os outros, em casa, em família....

 

Não estou a criar um monstro, eu sei.

Ele é meiguinho, inteligente, um coração mole. Quando quer. Se quiser...

 

Também sei que não sou um caso isolado, mas ele é o meu «filho isolado».

A única bolacha no meu pacote parental.

E tenho dias em que não sei que forma mais inventar para lidar com ele. E quem me conhece sabe que eu tenho uma imaginação desenfreada....

 

Enfim, amanhã será um novo pacote.

De onde, esperemos, saia, pelo menos de quando em vez, uma bolacha certa.